Orla da Lagoa ainda tem 26 casas: as últimas


O Globo, Selma Schmidt, 27/jun
Num sobrado amarelo de janelas brancas, bem cuidado, na esquina da Avenida Epitácio Pessoa com a Rua Conselheiro Macedo Soares, o advogado João Nicolau Mader Gonçalves, um viúvo de 96 anos, mora há 55. Ele se mudou para lá quando tinha 11 anos de casado e não saiu mais. Bem de frente para um cartão-postal da cidade, a casa do advogado é uma das 26 que se misturam a edifícios e pequenos prédios de classe média alta e alta, na orla da Lagoa Rodrigo de Freitas, o terceiro metro quadrado mais caro do Rio. Quase dois terços viraram imóveis comerciais, culturais ou esportivos. Só nove delas ainda são residências - e, mesmo assim, seis estão ocupadas efetivamente pelos donos e as demais, tombadas pelo patrimônio e malconservadas, vigiadas por caseiros ou seguranças.
João Nicolau trata como assunto íntimo e não fala sobre o motivo que o mantém morando, apenas com uma empregada, no casarão da Epitácio. Mas, quando o tema passa a ser outro, o advogado não pouca críticas ao tombamento. Com a isenção devida, já que sua casa não é tombada.
- O tombamento é um negócio de inveja, de perseguição. Não favorece nada. A cidade não fica mais bonita com as edificações sendo tombadas. O que é tombado acaba abandonado. As pessoas não conservam - opina.
Menos de 1% de casas em volta da Lagoa
As 26 casas representam um percentual muito pequeno do total de imóveis da Lagoa - menos de 1%: são 3.104 na orla da Epitácio (sendo 135 comerciais e um terreno) e 429 na Borges de Medeiros (38 comerciais), de acordo com o cadastro de IPTU da Secretaria municipal de Fazenda. Um retrato das mudanças urbanísticas que ocorreram na cidade. Mesmo levando-se em conta que o espelho d'água da Lagoa é tombado, o que restringe as construções em volta dela. Segundo a Secretaria de Urbanismo, à exceção do trecho entre a Rua General Garzon e o Canal do Jardim de Alah, o gabarito do entorno da Lagoa é de 12 metros (quatro andares), e de 25 metros (oito pavimentos), para prédios colados.
Entre as três residências tombadas no local, a localizada no número 4.120 da Epitácio, na esquina com a Rua Tabatinguera (via sem saída, que se cruza duas vezes com a Epitácio), está com o muro e a fachada pichados. Além de um casal de caseiros, pelo menos três cachorros fazem a segurança do imóvel.
Ainda na Epitácio, no número 2.500, em mais uma casa tombada, próxima ao Corte de Cantagalo, o caseiro João José da Silva vive há três anos e meio com a família:
- Os donos moram em Botafogo. Têm mantido a casa, mas não conseguem vender, porque ela é tombada. Não dá para derrubar e construir um prédio - afirma João.
"A gente não sabe quem é dono daqui"
Do lado de Ipanema, na Epitácio Pessoa 1.540, uma outra uma casa tombada parece abandonada, com janelas fechadas e plantas encobrindo parte da fachada. Um vigilante, no entanto, revela que não é bem assim:
- Os proprietários contrataram uma empresa de segurança para que a casa não seja invadida. Sempre tem um vigilante tomando conta. Mas a gente não sabe quem é dono daqui.
Como João Nicolau, Astreia Campos da Silva, de 93 anos, vive com empregados numa enorme casa, no número 2.274 da Epitácio Pessoa, próximo ao Corte do Cantagalo. Nos fundos fica a residência do caseiro Daniel Silva da Costa, que vive ali com a família - mulher e dois filhos - há 23 anos.
- Vez por outra aparecem representantes de construtoras querendo comprar, mas a minha patroa não quer sair daqui. Ela tem três filhos, mas diz que não vai morar com eles em apartamento, mesmo sendo aqui mesmo, na Zona Sul. Vive nesta casa há uns 50 anos. O terreno é muito grande, vale uns R$20 milhões - diz Daniel.
As casas de números 2.321 da Avenida Borges de Medeiros, 944 da Avenida Epitácio Pessoa e 6 da Rua Tabatinguera (esquina com a Epitácio) também são ocupadas pelos próprietários. Caso ainda da pequena casa branca, de muro baixo, na esquina da Epitácio com a Rua Maria Quitéria, apesar de as janelas permanecerem fechadas durante o dia.
- A casa parece fechada, mas não está. Um casal mora aí, mas os dois trabalham - conta um dos seguranças da Epitácio Pessoa.
Metro quadrado no lado de Ipanema chega a R$13 mil
É nesse trecho da orla da Lagoa que se concentra a maior quantidade de casas. São quatro juntas: do lado da residência branca estão os imóveis onde funcionam a construtora Wrobel, a Bassim Empreendimentos Imobiliários e a boate Nuth.
- Essas casas estão na parte considerada o filé da Lagoa. No lado de Ipanema e do Leblon fica a parte nobre da Lagoa, cujo metro quadrado está custando R$13 mil, R$2 mil a mais do que há dois anos - afirma Rubem Vasconcelos, vice-presidente da Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário do Estado do Rio (Ademi/RJ). - É o terceiro metro quadrado mais caro do Rio. Só perde para a orla de Ipanema e do Leblon (R$16 mil o metro quadrado) e a primeira quadra da praia desses bairros (R$11 mil).
Duas das casas com atividades comerciais, esportivas e culturais na orla da Lagoa são tombadas: a Clínica Ronaldo Pontes, de cirurgia plástica (Epitácio Pessoa 846); e a sede náutica do Vasco (Rua General Tasso Fragoso 65).
Embora não esteja instalada num bem tombado, a Casa do Saber (Epitácio Pessoa 1.164) tem uma frente estreita, o que restringe o aproveitamento do terreno: ali só pode ter casa. Motivo de tranquilidade para os inquilinos. O imóvel onde funcionaram dois restaurantes (Centro China e Pátio Portenho) foi reformado, com projeto do arquiteto Miguel Pinto Guimarães, para virar a Casa do Saber, onde são ministrados cursos de filosofia, artes e atualidades. Diretor de conteúdo da Casa do Saber, Rodrigo Almeida nem percebe que o imóvel está espremido entre dois prédios:
- É espremida, mas, internamente, a casa é aconchegante, com aproveitamento muito bom e uma vista linda. O ambiente interno é integrado à Lagoa.
Casa comercial é alugada por R$20 mil
O casal Valéria e Roberto Aguirre resolveram unir o útil ao agradável. Transformaram a casa de três andares que compraram há dez anos, na Avenida Borges de Medeiros, num misto de residência e comércio. É lá que moram e administram o Model Cabeleireiro e Curso de Modelo e Manequim:
- Vários representantes de um construtor batem à nossa porta, mas não temos interesse em vender a casa. É nossa residência e nosso negócio. O lugar é bom para morar e trabalhar - garante Valéria.
Os restaurantes Mr Lam, La Forneria e Pomodorino e a casa noturna Epitácio Club também funcionam em imóveis voltados para a Lagoa. Caso ainda do Hillel Rio (centro cultural judaico), da Fundação Eva Klabin, da loja de tapetes Isfahan, da Clínica da Lagoa (cirurgia plástica) e da Dicorp (clínica de estética). Já a casa de muro vermelho alto no número 5.030 da Epitácio, na esquina da Cícero Góis Monteiro, está para alugar para alguma atividade comercial. Lá funcionou a casa noturna Queen's Legs. São R$20 mil de aluguel mais R$800 por mês de IPTU, por 400 metros quadrados.
Patinhos feios entre cisnes
A orla da Lagoa Rodrigo de Freitas também tem seus patinhos feios, ambos na Avenida Epitácio Pessoa: o esqueleto de um prédio, com térreo e seis andares, no número 3.714; e o terreno cercado e cheio de mato onde funcionou o Chico's Bar, no 1.560. Pelo menos o edifício, seu dono, o cirurgião plástico Carlos Fernando Gomes de Almeida, promete transformar em cisne: garante que, em um ano, o prédio estará pronto. O imóvel tem duas entradas: a principal voltada para a Epitácio e a outra, para a Tabatinguera 81, uma ladeira. O lado da Tabatinguera foi concluído (térreo e dois andares) - é lá que funciona a clínica de Carlos Fernando. No lugar, ele chegou a morar, mas se mudou:
- Quando ganhei o prédio de meu pai, há 25 anos, ele estava inacabado. Meu pai tinha comprado o edifício de uma construtora. Sou médico, cirurgião. Tinha planos de morar e ter consultório e clínica ali. Os anos foram passando. Aprontei a parte de cima (da Rua Tabatinguera). Estava mais preocupado com a minha vida profissional. Fui deixando para lá o lado da Epitácio Pessoa. Mas, agora, estou numa outra fase da vida e decidi que vou concluir a obra. O prédio não vai continuar como está. Vou reformar e ceder os apartamentos para a minha família - assegura o médico.
A despeito de críticas de vizinhos e de multas da prefeitura por manter um esqueleto de frente para um cartão postal da cidade, Carlos Fernando alega que não tem obrigação de concluir o edifício. E mais: que tem impedido o lugar de ser invadido:
- Pelo menos o local não foi ocupado nestes anos todos. Tem um vigia morando. Ninguém bota o pé e ninguém ocupa. Também pago o meu IPTU normalmente.
No terreno onde funcionou o Chico's Bar até o início do anos 2000, não há qualquer placa informando sobre um empreendimento futuro. Em 2006, a Secretaria municipal de Urbanismo analisava um projeto de construção de um prédio de nove pavimentos no terreno, mas a ideia não foi levada adiante.