O presente de Lota ao Rio, 48 anos depois

16/08/2013 - O Globo, Flávio Tabak

Peladeiros, moradores de rua, pais e filhos, assaltantes, turistas, vizinhos, prostitutas e qualquer tipo de visitante diurno ou noturno do Parque do Flamengo devem a Lota de Macedo Soares a existência do único espaço público do Rio que oferece área verde entre uma praia inteira e a cidade. Os carros, ali, são coadjuvantes. Pedestres e ciclistas circulam do Centro à Zona Sul longe da fumaça dos carburadores.

Arquiteta autodidata, Lota convenceu o então governador da Guanabara e seu amigo Carlos Lacerda a fazer daquele aterrado um enorme parque urbano. Nestes seus quase 48 anos, passou por cíclicos altos e baixos, e certas áreas de seu 1,2 milhão de metros quadrados de terras provenientes do desmonte do Morro de Santo Antônio, na Lapa, nem sempre funcionaram ou foram preservadas como o previsto.

A um dia da estreia do longa "Flores raras", de Bruno Barreto - sobre a história de amor entre Lota (Glória Pires) e a poetisa americana Elizabeth Bishop (Miranda Otto) e sobre suas trajetórias pessoais -, o Parque do Flamengo sobrevive como nosso autêntico, e carioquíssimo, Central Park. E um de seus grandes problemas é a descaracterização do projeto de Roberto Burle Marx, como atestou o arquiteto e paisagista Haruyoshi Ono, de 69 anos. Ele foi estagiário de Burle Marx durante a construção do parque e, décadas depois, herdou seu escritório. Esta semana, Ono visitou o parque a convite do "Globo a Mais".

No fim de 1960, Lota recebeu carta branca do governador. Assim, convocou e coordenou uma equipe notável, que incluía, além do paisagista Burle Marx, os arquitetos Affonso Eduardo Reidy, Sergio Bernardes e Jorge Moreira; e o botânico Luiz Emygdio de Mello Filho. Reuniões eram feitas num barracão desconfortável instalado no meio do campo deserto. Foram muitas brigas antes, durante e depois da construção, mas o ímpeto de Lota e o apoio de Lacerda garantiram que o projeto caminhasse. Uma das principais disputas vencidas por Lota foi a de manter somente duas pistas de automóveis, já que havia pressão por quatro.

A cidade de hoje tem no Parque do Flamengo um ambiente também elaborado por seus habitantes ao longo destas quase cinco décadas. Os campos de futebol, revestidos por grama sintética, são um sucesso e não passam uma noite vazios. Antes do parque, a cidade não tinha campos de futebol públicos desse porte. Por outro lado, vários jardins de Burle Marx sofrem com a falta de conservação e são usados como banheiro. O mesmo ocorre com a área que seria destinada ao nautimodelismo, passatempo cuja atração são os barcos de miniatura usados por colecionadores. Sobrou apenas um tanque seco.

Áreas mais desertas, como a do gramado perto da Marina da Glória, são perigosas e registram assaltos. Já o longo banco de madeira sobre o deque do Rio Carioca, novidade dos anos 2000, é um animado, e bem conservado, ponto de encontro de moradores. Na madrugada, os trechos perto do MAM, do anfiteatro e do Monumento Estácio de Sá são pontos de prostituição masculina e feminina e até de orgias promovidas por grupos adeptos do sexo ao ar livre.

Arquiteta e professora do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo da FAU/UFRJ, Lucia Costa fez sua tese de doutorado sobre o parque, que, diz ela, sempre foi usado como espaço político. As brigas vão desde as decisões iniciais do projeto até a recente polêmica sobre a ampliação da Marina da Glória, ainda sem desfecho, segundo o Iphan. Lucia ressalta que o parque de hoje reflete não apenas as intenções de quem o projetou, porque, como todo espaço público, existe uma construção social:

- O projeto final do parque, a cara que ele tem hoje, é uma mescla de três agentes: quem projetou, quem administra e a população que usa. Não existe área pública sem conflitos, e cada sociedade os resolve com uma negociação silenciosa. Quando está lotado de mendigos, a classe média se afasta. O poder público entra, resolve, e a classe média volta. Tem sido assim nestes quase 50 anos. Há uma capacidade de regeneração fantástica, e isso faz dele um projeto muito especial.

Discípulo de Burle Marx critica abandono do parque

Os gramados do Parque do Flamengo são bem aparados e há mudas plantadas em vários pontos. Mas muitas das ideias de Burle Marx para o paisagismo dali estão borradas pela falta de manutenção. No gramado que simula as ondas do calçadão de Copacabana, há ervas daninhas que descaracterizam o desenho original. As gramas claras e escuras não estão separadas como deveriam. As plantas avermelhadas aos pés das árvores pau-mulato, num retângulo instalado entre as ondas, não existem mais. O mesmo ocorre em frente ao Monumento aos Pracinhas, onde há pequenas estruturas de concreto com mato onde deveria haver plantas.

Essas constatações são do arquiteto e paisagista Haruyoshi Ono, que diz não gostar de frequentar o parque porque fica "triste e revoltado". O discípulo de Burle Marx, que herdou seu escritório, estima que ainda restam 70% do paisagismo original.

- Quando passo por aqui, sempre penso no Burle Marx. É praticamente um estado de abandono. Sabemos que é quase impossível manter um jardim 100% cuidado, mas ervas-de-passarinho (pragas que matam árvores) são fáceis de se erradicar. As árvores estão quase todas infestadas por doenças e parasitas, e isso é falta de manutenção - diz Ono.

A prefeitura respondeu, em nota, sobre os problemas. A Secretaria de Desenvolvimento Social diz fazer ações periódicas para acolher pessoas em situação de rua. Sobre os problemas de conservação, a Comlurb informa que atua com 120 garis, que fazem a limpeza, manutenção do mobiliário e poda. Engenheiros florestais e agrônomos avaliam as condições da vegetação e programam serviços. A prefeitura afirma não ser a responsável pelo banheiro perto da Marina da Glória. A Rioluz, por sua vez, informa ter um projeto para refazer a iluminação dos jardins perto do MAM. A Guarda Municipal explica manter atuação permanente no parque, com 22 guardas, além de equipes motorizadas.

Para o antropólogo Felipe Berocan Veiga, pesquisador do Laboratório de Etnografia Metropolitana (LeMetro/IFCS/UFRJ), o parque é um dos espaços de lazer mais democráticos do Rio:

- O Aterro é uma espécie de miniatura da cidade, um lugar capaz tanto de traduzir os encantos da natureza quanto os eventuais problemas de segurança.